domingo, 21 de dezembro de 2008

EU GOSTO E NÃO SABIA

Não gosto muito daqui, não. Este ambiente silencioso, em que se ouve o tic tic dos dedos nos teclados dos computadores, esta coisa toda chique e enfornada em regras esquisitas e padrões desnecessários. Falando em tic tic, lá vem a senhorita em seu salto alto cruzando o saguão. Bonita ela, mas meio prepotente: toc, toc, toc...

O mais curioso é que este parece ser o único lugar chique que pobre freqüenta com algum propósito. Entra, senta, espera e sai de mau humor.

Aquela senhorita (senhora seria uma ofensa) é que é uma curiosidade só. Única pessoa no recinto capaz de fazer alguém sair feliz. Seu sorriso é um sopro de bem-estar em qualquer um que se apresenta. Sorriso puro, honesto. Aquele característico que de tão largo a faz parecer oriental com seus olhos afinados. Faz-lhe merecedora de ser ainda mais bela que a formosa prepotente de minutos atrás. Continuo a observá-la, e tranqüiliza-me enquanto espero tediosamente ao telefone pelo atendimento do Fone “Fácil”. Estas modernidades me enojam, mas são fundamentais no mundo de hoje – a escrever em um notebook, sinto como cometendo um ato promíscuo em traição à minha caneta e meus papéis, mas ao menos economizo rabiscos.

Cortando a filosofia e o papo furado, é agora que devo à leitora e ao leitor um pedido de perdão, e também a senhorita do salto alto. Assistindo minha aflição na desesperança da espera, ela senta à minha frente e começa a me encarar estranhamente. Na dúvida, pergunto o que ela deseja, e ela retruca com a mesma pergunta; quer me ajudar.

A julguei de vista. Acho-me muitas vezes conhecedor da psicologia humana, talvez por isso cometa este mesmo pecado seguidas vezes – inclusive o fiz dias atrás, e o fato gerou uma belíssima crônica. Não aprendi com o erro, mesmo o assumindo. Esta é a gerente prestando assistência fora de sua alçada – sinto-me especial por alguns segundos. Meu caso é um tanto complicado, mas tentamos de um modo e de outro, sem sucesso. Ela sempre com extrema simpatia e pacientemente esperando comigo, pois logo tomou mão de outro telefone e discou para também aguardar atendimento. Enquanto esperávamos, conversávamos, e ali surgiram sorrisos, afinidades, e aquele interesse vulgar pela vida um do outro. Algumas ligações e conversas em busca da solução, em busca da causa do problema, e horas de espera entre uma tentativa e outra. A solução poderá vir somente amanhã, e é incerta. Ela indica-me uma alternativa e me vou parcialmente satisfeito com o resultado, e ao menos com uma ponta de esperança.

Entretanto, apesar dos pesares, a figura do início da crônica vira-se ao avesso. Ao invés do desejo de fechar minha conta e cortar o vínculo com a atribulação, fica um sentimento antagônico de agradecimento por sua simpatia: muito obrigado pelo comprometimento, agência 1512 do banco Bradesco.


Blumenau, 18/12/2008.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

CEREJA COM COBERTURA DE... MARTINI

E estou contando os dias, talvez as horas, agora que o momento tão esperado se aproxima. Penso. Planejo. Imagino. O capricho é tanto que até faço letra bonita. Nas palavras de Crash Test Dummies, “os lábios que nunca beijei, os lábios que não consigo esquecer” passeiam majestosamente em meus anseios. Talvez eu esteja colocando muita expectativa neste desejo de conhecê-la. Ela mesma advertiu-me, em sua bela sabedoria que me faz praticar a vida, e eu sei que estou.

Você estranhou o termo “praticar a vida”, mas, de simples que é o entendimento, me vale a pena explicar em poucas linhas: embora eu conheça muitas coisas sobre a vida, por aprendizado ou por natural percepção, às vezes esqueço certas regras – várias delas essenciais. Mas ela as parece ter na ponta da língua, talvez apenas as que me faltam, por ser minha alma gêmea, a que me completa, e toda vez que ela resolve lembrar-me destas regras, acerta em cheio com palavras que ecoam na minha mente toda vez que necessito. Isto é ensinar a praticar a vida.

Este meu coração indomável se rende. Já tivemos nossas desavenças, pequenas intrigas fatídicas. Nestas, eu abandonaria a qualquer senhorita sem o menor remorso, de egoísta que sou. Mas já viajei quilômetros por ela – achando ser por mim –, até sua cidade, e quanto mais perto fui, mais convicto fiquei de que não suportaria o afastamento completo.

E eu a perdôo sempre. Sei de suas dificuldades de personalidade, conheço cada pedacinho dela como se fôssemos primo e prima desde a infância. Ela já se surpreendeu, quando adivinhei que não sai da cama até o último minuto antes de ir ao trabalho. Para mim, amante da pontualidade, é algo abominável, mas quer saber? não ligo a mínima, de verdade. Por mim ficaria na cama com ela, a fazer companhia e acordando a dorminhoca com carícias.

Como se chama isso? Esse sentimento de entrega, esse desprezo pelo que consideramos verdade? Abdico da liberdade de argumentar.

Parece um feitiço doce amargo posto em mim e entregue à responsabilidade do destino, que por sua vez fez com que nos encontrássemos e passássemos a fazer parte do dia a dia um do outro; que traçou nossos caminhos para que nosso encaixe fosse moldado, como uma predestinação.

Por alguma razão, temo o por vir. Esta senhorita é a cereja do meu Martini.


Blumenau, 01/12/2008.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

UMA INUNDAÇÃO DE BONDADE

– Fiquei cinco dias ilhado, num sítio em Pomerode, sem água, sem energia elétrica e sem comida. Pescávamos peixes na lagoa e assávamos no forno à lenha. Quando consegui voltar à cidade encontrei minha casa debaixo d’água.
– E ainda assim você está aqui. Isso é louvável.

Ouvi esta declaração hoje, em um dos postos de coleta de doações, onde estava trabalhando como voluntário. Horas antes o havia julgado erroneamente, de vista. Recém havíamos engolido um caminhão que trouxera alimentos, na incrível rapidez da força que tirávamos dos urros masculinos que ecoavam no pavilhão – pois ela havia-se esgotado há muito. Sentamos uns poucos minutos para descansar e relaxar matando um cigarro. Ele puxou conversa, então sentei a seu lado e fiquei ali a perceber, apesar de sua frágil estatura, o quão grande ele era, e o quão terrível eu podia ser em meus pensamentos.

Nossa Blumenau está em decreto de calamidade pública, devido ao excesso de chuva. No noticiário acompanhamos relatos de pais de família que perderam tudo; com os próprios olhos acompanhamos os tanques nas ruas que usamos para ir ao trabalho, e no ar os helicópteros vindos de cidades de todo o país. Desabamentos, veículos flutuando, fome, falta de água – potável, claramente –, doenças, covas abertas, pontes caídas, mortes, pessoas desabrigadas e pessoas presas nos morros acenando para os helicópteros, desesperadas por socorro. Parece o armagedon, e meus pais o assistem em Minas Gerais, pelo noticiário, agoniados em preocupação, enquanto minhas irmãs mais novas dançam sua inocência na sala. Escrevo da varanda de casa, de físico cansado e mente cada vez mais atribulada, enquanto assisto a torrente de água que não cessa e me caçoa.

Bebo para aliviar a dor do coração. Gostaria de crer em um deus qualquer para ter em quem colocar a culpa, mas, melhor que isso, prefiro lembrar do dia de hoje. Para mim, ele não passou. Está encravado em minha memória, e se fortalece enquanto tento segurar uma lágrima. Fico extremamente emocionado neste momento lembrando dos detalhes: os carros e caminhões que não paravam de chegar, as homenagens e aplausos em agradecimentos aos caminhões que chegavam de distantes cidades, as comemorações a cada caminhão descarregado ou cheio, os tropeços nas lonas, as piadas sobre nossa própria desgraça do cansaço... Tudo tinha uma beleza sem preço, até quando desloquei minha coluna numa das caixas que carreguei, de mirrado e fracote que sou.

O presidente veio à cidade; William Boner apresentou o Jornal Nacional ao vivo daqui; nosso excelente prefeito estava no Jornal do Almoço vestindo capa de chuva e de barba por fazer. Veio Ana Maria Braga, veio fulano, veio cicrano. Veio um monte de gente. Cada um faz sua parte, e com trabalho e dinheiro recuperam-se os bens materiais, reconstrói-se a cidade. Mas hoje, dentre aquelas centenas de pessoas em suas expressões fatigadas, voluntários sorrisos cheios de força reconstruíram solidários espíritos.


Blumenau, 29/11/2008.