domingo, 21 de dezembro de 2008

EU GOSTO E NÃO SABIA

Não gosto muito daqui, não. Este ambiente silencioso, em que se ouve o tic tic dos dedos nos teclados dos computadores, esta coisa toda chique e enfornada em regras esquisitas e padrões desnecessários. Falando em tic tic, lá vem a senhorita em seu salto alto cruzando o saguão. Bonita ela, mas meio prepotente: toc, toc, toc...

O mais curioso é que este parece ser o único lugar chique que pobre freqüenta com algum propósito. Entra, senta, espera e sai de mau humor.

Aquela senhorita (senhora seria uma ofensa) é que é uma curiosidade só. Única pessoa no recinto capaz de fazer alguém sair feliz. Seu sorriso é um sopro de bem-estar em qualquer um que se apresenta. Sorriso puro, honesto. Aquele característico que de tão largo a faz parecer oriental com seus olhos afinados. Faz-lhe merecedora de ser ainda mais bela que a formosa prepotente de minutos atrás. Continuo a observá-la, e tranqüiliza-me enquanto espero tediosamente ao telefone pelo atendimento do Fone “Fácil”. Estas modernidades me enojam, mas são fundamentais no mundo de hoje – a escrever em um notebook, sinto como cometendo um ato promíscuo em traição à minha caneta e meus papéis, mas ao menos economizo rabiscos.

Cortando a filosofia e o papo furado, é agora que devo à leitora e ao leitor um pedido de perdão, e também a senhorita do salto alto. Assistindo minha aflição na desesperança da espera, ela senta à minha frente e começa a me encarar estranhamente. Na dúvida, pergunto o que ela deseja, e ela retruca com a mesma pergunta; quer me ajudar.

A julguei de vista. Acho-me muitas vezes conhecedor da psicologia humana, talvez por isso cometa este mesmo pecado seguidas vezes – inclusive o fiz dias atrás, e o fato gerou uma belíssima crônica. Não aprendi com o erro, mesmo o assumindo. Esta é a gerente prestando assistência fora de sua alçada – sinto-me especial por alguns segundos. Meu caso é um tanto complicado, mas tentamos de um modo e de outro, sem sucesso. Ela sempre com extrema simpatia e pacientemente esperando comigo, pois logo tomou mão de outro telefone e discou para também aguardar atendimento. Enquanto esperávamos, conversávamos, e ali surgiram sorrisos, afinidades, e aquele interesse vulgar pela vida um do outro. Algumas ligações e conversas em busca da solução, em busca da causa do problema, e horas de espera entre uma tentativa e outra. A solução poderá vir somente amanhã, e é incerta. Ela indica-me uma alternativa e me vou parcialmente satisfeito com o resultado, e ao menos com uma ponta de esperança.

Entretanto, apesar dos pesares, a figura do início da crônica vira-se ao avesso. Ao invés do desejo de fechar minha conta e cortar o vínculo com a atribulação, fica um sentimento antagônico de agradecimento por sua simpatia: muito obrigado pelo comprometimento, agência 1512 do banco Bradesco.


Blumenau, 18/12/2008.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

CEREJA COM COBERTURA DE... MARTINI

E estou contando os dias, talvez as horas, agora que o momento tão esperado se aproxima. Penso. Planejo. Imagino. O capricho é tanto que até faço letra bonita. Nas palavras de Crash Test Dummies, “os lábios que nunca beijei, os lábios que não consigo esquecer” passeiam majestosamente em meus anseios. Talvez eu esteja colocando muita expectativa neste desejo de conhecê-la. Ela mesma advertiu-me, em sua bela sabedoria que me faz praticar a vida, e eu sei que estou.

Você estranhou o termo “praticar a vida”, mas, de simples que é o entendimento, me vale a pena explicar em poucas linhas: embora eu conheça muitas coisas sobre a vida, por aprendizado ou por natural percepção, às vezes esqueço certas regras – várias delas essenciais. Mas ela as parece ter na ponta da língua, talvez apenas as que me faltam, por ser minha alma gêmea, a que me completa, e toda vez que ela resolve lembrar-me destas regras, acerta em cheio com palavras que ecoam na minha mente toda vez que necessito. Isto é ensinar a praticar a vida.

Este meu coração indomável se rende. Já tivemos nossas desavenças, pequenas intrigas fatídicas. Nestas, eu abandonaria a qualquer senhorita sem o menor remorso, de egoísta que sou. Mas já viajei quilômetros por ela – achando ser por mim –, até sua cidade, e quanto mais perto fui, mais convicto fiquei de que não suportaria o afastamento completo.

E eu a perdôo sempre. Sei de suas dificuldades de personalidade, conheço cada pedacinho dela como se fôssemos primo e prima desde a infância. Ela já se surpreendeu, quando adivinhei que não sai da cama até o último minuto antes de ir ao trabalho. Para mim, amante da pontualidade, é algo abominável, mas quer saber? não ligo a mínima, de verdade. Por mim ficaria na cama com ela, a fazer companhia e acordando a dorminhoca com carícias.

Como se chama isso? Esse sentimento de entrega, esse desprezo pelo que consideramos verdade? Abdico da liberdade de argumentar.

Parece um feitiço doce amargo posto em mim e entregue à responsabilidade do destino, que por sua vez fez com que nos encontrássemos e passássemos a fazer parte do dia a dia um do outro; que traçou nossos caminhos para que nosso encaixe fosse moldado, como uma predestinação.

Por alguma razão, temo o por vir. Esta senhorita é a cereja do meu Martini.


Blumenau, 01/12/2008.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

UMA INUNDAÇÃO DE BONDADE

– Fiquei cinco dias ilhado, num sítio em Pomerode, sem água, sem energia elétrica e sem comida. Pescávamos peixes na lagoa e assávamos no forno à lenha. Quando consegui voltar à cidade encontrei minha casa debaixo d’água.
– E ainda assim você está aqui. Isso é louvável.

Ouvi esta declaração hoje, em um dos postos de coleta de doações, onde estava trabalhando como voluntário. Horas antes o havia julgado erroneamente, de vista. Recém havíamos engolido um caminhão que trouxera alimentos, na incrível rapidez da força que tirávamos dos urros masculinos que ecoavam no pavilhão – pois ela havia-se esgotado há muito. Sentamos uns poucos minutos para descansar e relaxar matando um cigarro. Ele puxou conversa, então sentei a seu lado e fiquei ali a perceber, apesar de sua frágil estatura, o quão grande ele era, e o quão terrível eu podia ser em meus pensamentos.

Nossa Blumenau está em decreto de calamidade pública, devido ao excesso de chuva. No noticiário acompanhamos relatos de pais de família que perderam tudo; com os próprios olhos acompanhamos os tanques nas ruas que usamos para ir ao trabalho, e no ar os helicópteros vindos de cidades de todo o país. Desabamentos, veículos flutuando, fome, falta de água – potável, claramente –, doenças, covas abertas, pontes caídas, mortes, pessoas desabrigadas e pessoas presas nos morros acenando para os helicópteros, desesperadas por socorro. Parece o armagedon, e meus pais o assistem em Minas Gerais, pelo noticiário, agoniados em preocupação, enquanto minhas irmãs mais novas dançam sua inocência na sala. Escrevo da varanda de casa, de físico cansado e mente cada vez mais atribulada, enquanto assisto a torrente de água que não cessa e me caçoa.

Bebo para aliviar a dor do coração. Gostaria de crer em um deus qualquer para ter em quem colocar a culpa, mas, melhor que isso, prefiro lembrar do dia de hoje. Para mim, ele não passou. Está encravado em minha memória, e se fortalece enquanto tento segurar uma lágrima. Fico extremamente emocionado neste momento lembrando dos detalhes: os carros e caminhões que não paravam de chegar, as homenagens e aplausos em agradecimentos aos caminhões que chegavam de distantes cidades, as comemorações a cada caminhão descarregado ou cheio, os tropeços nas lonas, as piadas sobre nossa própria desgraça do cansaço... Tudo tinha uma beleza sem preço, até quando desloquei minha coluna numa das caixas que carreguei, de mirrado e fracote que sou.

O presidente veio à cidade; William Boner apresentou o Jornal Nacional ao vivo daqui; nosso excelente prefeito estava no Jornal do Almoço vestindo capa de chuva e de barba por fazer. Veio Ana Maria Braga, veio fulano, veio cicrano. Veio um monte de gente. Cada um faz sua parte, e com trabalho e dinheiro recuperam-se os bens materiais, reconstrói-se a cidade. Mas hoje, dentre aquelas centenas de pessoas em suas expressões fatigadas, voluntários sorrisos cheios de força reconstruíram solidários espíritos.


Blumenau, 29/11/2008.

domingo, 5 de outubro de 2008

HOJE

O mundo hoje acordou em depressão profunda. Caía uma chuva fina, que deixava as pessoas em dúvida se deviam ou não se proteger de alguma forma. Mas, independente da decisão, lhes faltava motivação física para qualquer coisa, senão caminhar sem pensar no destino.

Algumas pessoas que estavam de pé no ônibus tinham a testa franzida, incomodados com alguma coisa; talvez apenas incomodados com esta segunda-feira. Todos os outros estavam com cara de nada. Um senhor olhava fixamente para a janela entreaberta. Lhe incomodava o vento forte no rosto, mas não tinha vontade de fechá-la. Todos os dias quase não se ouve o barulho do motor, mas hoje, ouvia-se até o tilintar das ferragens. Um homem negro, de cavanhaque bem feito, segurava uma Bíblia e tinha seus olhos cerrados. Vendo que movia seus lábios, julgo que devia estar pedindo a Deus que o livrasse da agonia deste dia, em que nem a fé pode trazer alívio. Vez ou outra, uma moça perguntava algo, baixinho, no ouvido do esposo. Ele respondia com o balbuciar de alguma coisa que somente ela era capaz de entender. A convivência é algo extraordinário. Me fascina.

O engarrafamento não tinha causa justa. Parecia ser apenas indisposição dos motoristas de sair do estado de inércia. Como aquele rapaz vestindo verde musgo, que não atravessou a rua quando o sinal fechou.

Este é um dia perfeito para que as pessoas descubram que suas vidas não têm o menor sentido. Que são miseráveis e pobres, e a culpa não é de ninguém mais, senão deles mesmos. Que, naquele ônibus, deviam ter cometido um suícidio em massa, assim teriam sido todos salvos deste dia.

Entretanto, hoje, também começo a achar que o fim da linha é um ótimo lugar para um recomeço. Existe algo hoje que é mais curioso que tudo isso. Da noite para o dia, como se todo o proposital tivesse acontecido por acaso, como se o óbvio não fizesse mais sentido, e como se o que estava perdido tivesse sido achado, eu era a única pessoa com um sentido para viver, para ser melhor.



Blumenau, 25/06/2007.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

MEU QUERIDO BAR

E está tocando samba. Um samba moderno, mas não deixa de ser samba. Não ouço samba, não compro CDs de samba, não ganho CDs de samba, não tenho CDs de samba; mas esse bar é tão bom. O bar tem samba, e eu não gosto de samba. Mas o bar tem cerveja, tem cigarro, gente bonita e seus risos, tem alegria. Tem energia, pessoas extraordinárias frequentam o bar, gente com essência. Chego até a gostar do samba.

Antônio Prata comentou que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando levamos moça ou outra pra sair, pra namorar, levamos em lugar fino, onde o prato é caro só porque o nome é esquisito. Alguns têm até gosto de cocô, eu digo, mas o lugar é chique. Meio intelectual, meio de esquerda, gosto mesmo é de ser meio vagabundo. Não vou querer sair daqui se aqui tem a melhor batata frita da cidade. Melhor até que de bar chique, porque existe bar chique. Chatos que só eles, cheios de gente metida e quase uma passarela de desfile de moda. Bar assim não tem a mão da tia, não tem o carinho. Dá vontade até de ir lá na cozinha fatiar a batata e jogar conversa fora de tão em casa que a gente se sente. Bar é lindo!

Mas o bar em si de belo não tem nada. A decoração praiana em pleno centro da cidade até que é atraente, mas tem mesas, cadeiras e gente, como todo bar qualquer. Chega até a ter samba, forró. Mas e o que é que tem? É lindo.

Assim é o amor.

Pode não ser o bar mais bonito, pode não ser o bar mais popular. Dia ou outro pode não ser tão emocionante como se esperava. Pode até ser prejudicial no caso de uma bebedice exagerada. Tem vez que chega-se a jurar nunca mais entrar no bar. A saudade dói quando a grana falta. Pode ter samba, forró, isso ou aquilo, mas o bar sempre estará lá e sempre será aquele mesmo bar: lindo e repleto de bem-estar. E toda vez que se passa em frente dá vontade de entrar pra tomar uma cervejinha.

Suelen é meu bar.


Blumenau, 27/08/2008.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A Afinidade

É tão curiosa a afinidade entre seres humanos. Me emociona escrever esta frase. Hoje um fato inusitado me ocorreu:

- Que bom encontrar você, menina misteriosa que tanto admiro.
- Puxa, assim até fico encabulada. Mas você também é um tanto misterioso. Dá aquela vontade de desvendar.
- Uau! Aí está algo que nunca me haviam dito antes.
- Imagina. Uma vez estava observando você costurar um patch na sua jaqueta. Rapaz prendado. Em outra ocasião fiquei a ouvi-lo cantar na casa de uma amiga. Sabe quando bate aquela vontade de conhecer?
- Nossa! Você estava lá? Minha vez de ficar encabulado. Não sabia dessas cosias. Faz tanto tempo! Mas também sempre tive vontade de te conhecer.
- Legal! Então é recíproco.

Ah, e é mesmo. Mas isto é muito curioso, como vinha dizendo. Não sei quase nada a seu respeito. Tudo o que sei é que não tem nada a ver comigo. Ela gosta de coisas antigas. Veste paletó, no maior estilo anos 60 e aprecia o bom e velho rock'n roll com influências do punk setentista. Sou tão contrário a ponto de ser vocalista de uma banda que toca um som que sequer é difundido no Brasil. A arte mais antiga que aprecio - você já sabe - são as crônicas de Rubem Braga dos anos 30, principalmente. E ele era um boêmio que gostava de samba. A única coisa que eu e ela temos em comum é a apreciação pela leitura. Mas, provavelmente, não lemos as mesmas coisas.

Então, de onde vem isto, esse anseio todo em conhecê-la? Até propus um dia sentarmos para conversar. Isso antes de cair a ficha: o que direi a ela? Mas adoraria tê-la aqui ao meu lado no bar.

Continuo me fazendo a mesma pergunta. Talvez seja apenas curiosidade, mas duvido plenamente. Dizem por aí que os opostos se atraem. Não sei. Acho uma bobagem que criaram a partir da Física, ou de pilhas alcalinas.

(...)

Mas espere. Deixe-me tentar um exemplo:

Suponho marido e mulher. Se preparam para ir à uma festa de aniversário. E são muito parecidos em personalidade. Calmos. Serenos. A mulher se demora a passar o batom enquanto o homem tranquilamente se ajeita no sofá a trocar os canais sem o menor interesse. Apenas esperando o tempo passar. Quando ela termina, pega o presente e chama o marido: Vamos? E chegam atrasados à festa. Ao contrário disso, a mulher borra a maquiagem assustada com o chamado ansioso do marido já perturbado: Anda logo, criatura! Ambos saem correndo, chegam na festa a tempo, mas esquecem o presente.

Já em outro caso a mulher calmamente se arruma enquanto o homem em agonia buzina da garagem com o carro já ligado. Ela pega o presente e ambos chegam a tempo na festa.

Que coisa!



Blumenau, 15/10/2007.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Cativantemente Falando

Eu frequento muitos bares. Bar é a parte fundamental do meu ócio perfeito. Tem gente que ocupa o ócio se preocupando, ou melhor, se interessando por vida alheia. Particularmente, me ocupo pensando, ou observando, acompanhado de minhas muitas cervejas e cigarros. Analiso pessoas, psicologicamente falando. Estas formosas senhoritas que me despertam o desejo de as desvendar e acordar seus anseios, defeitos e manias. (Dias atrás descobri que quando avistamos uma pessoa formosa temos o péssimo hábito de projetar nela aquilo que gostaríamos que fosse, e depois que a descobrimos, as vezes nos decepcionamos, nos magoamos, e como se não bastasse acabamos até mesmo colocando a culpa nela). Daria um excelente psicólogo, mas não sou altruísta o suficiente ao ponto de gastar meu cotidiano me ocupando com os problemas dos outros; ocupo-me com os anseios de meus chegados e isso é o bastante.

Observo a musicalidade de gente como Ana, o carisma de gente como Manu, e a simplicidade de gente como Gio, dono de meu bar predileto, o Kaffe Universitat, conhecido entre os amigos frequentadores como KU - fácil entender a carinhosa sátira. Falando neste bar penso em simplicidade; falando em simplicidade penso em Camila. Eis alguém essencialmente cativante. Me pede, no exato momento, um cigarro. Ofereço três, quatro e se precisar adquiro outra carteira para quando quiser mais, porque ela merece. Pense em um sorriso, um abraço capaz de renovar o dia de qualquer ser humano, talvez inclusive de não-humano. Sinceridade capaz de fazer mulherengo feito eu não pensar em segundas intenções. É de uma beleza formidável. Seu rosto fino, penteado moderno, tatuagens e o tipo de lábios perfeitamente delineados a dizer: "Você quer me beijar e eu sei disso". Mas ela não pensa como eu, não pensa como você. Pouco se importa. Vem à minha mesa, vai à mesa de outrém, dança MPB, conversa e cativa a todos aqui e acolá. Eis um extraordinário espírito a fazer bem aos demais. "Por favor, não me leve a mal", não quero que você me queira. Quero apenas que continue esta pessoa maravilhosa que tem sido desde o primeiro dia que a vi.

E que não seja hipócrita feito eu, que agora a desejo bruscamente.


Blumenau, 13/08/2008.

sábado, 9 de agosto de 2008

A Essência

Estranhamente, após um ano de cativeiro, novamente esta aflição interior me consome; a dor da alma. Lembro perfeitamente da última vez: estávamos eu e Ricardo - presenteado a mim como um dos irmãos postiços que tenho - sentados à mesa conversando sobre qualquer coisa, quando pagou-me um pastel. Sem razão alguma subitamente lágrimas começam a correr em meu rosto. Assim, como um espirro inusitado às vezes vem. É a dor do mundo que chegou ao ápice, até o ponto onde posso suportar.

Carregar o mundo nas costas não é uma tarefa fácil. O conhecimento e a consciência da essência humana ferem um grande espírito, principalmente em virtude do descaso que dela se faz, ou que talvez não seja percebida. A dor causada pela pressão exercida pela matéria nas profundezas de um oceano é a mesma sentida por filósofos a medida que se busca a profundidade de um pensamento, de uma causa.

Com esta concepção poderia eu já finalizar a idéia e estaria de bom tamanho. Mas partindo deste ponto existem tantas coisas a serem ditas que seria uma ofensa discursar a respeito em apenas uma crônica. Dariam um livro, e para isto seria necessário tempo. Este que penso não ter, pois fui abduzido pela forma de vida atual. Observo as pessoas indo e vindo na loucura de seus automóveis, nos ônibus, cada uma delas preocupadas com seus afazeres passageiros sem pensar em descobrir suas essências ou para que propósito vivem. Tenho tempo para escrever esta crônica até que acabe minha cerveja e então volto ao trabalho. Afinal, preciso do dinheiro para sobreviver. A leitora e o leitor que engulam suas essências mal-mastigadas.


Blumenau, 06/08/2008.

sábado, 2 de agosto de 2008

UMA VELA NA JANELA

Ora. O fim do ano. É chegada a hora de pegar caneta e papel e fazer a famosa listinha do que quer conquistar no próximo ano. E do que quer abandonar também.

Mas tem quem viva do passado. A adolescente que folheia o diário onde registrou todas as paixões do ano; algumas talvez ela nem lembre. O sábio chefe de lar reúne a família para uma retrospectiva, igual a da Globo. O presidiário que, deitado olhando o teto, entrelaça os dedos das mãos sob a nuca e relembra as mesmas coisas do ano passado. Seu Nestor, da loja de discos, todo ano coloca uma vela na janela e, ouvindo o solo de saxofone de "Long as I Can See the Light", relembra os shows do Creedence. Ele gosta de dizer que viajou mil e seiscentas milhas em um ônibus para chegar ao Woodstock de 69; e de como os americanos pronunciavam seu nome em paroxítona. Às vezes o chamo assim.

Essas listas podem ser extensas ou suprimidas. As extensas são cheias de coisas pequenas e funcionais que fazem o mundo andar, progredir, crescer. As suprimidas vêm com dois ou três itens capazes de mudar a história da humanidade. Há os que enfiam os pés pelas mãos e os que acreditam não serem capazes de muito. Entretanto, todos somos sonhadores.

Jovens universitários calculam quantas manifestações se é possível realizar em doze meses. Casais planejam unir-se em matrimônio. Idosos desejam tão somente morrer. Crianças prometem estudar bastante para não se dar mal no fim do ano, embora só o façam nos primeiros meses - depois o que mais importa são o recreio e as aulas de Educação Física. Homens trabalharão arduamente para terminarem a construção de suas casas. Artistas se sacrificarão para obterem sucesso - outros nem tanto pelo sucesso; artistas essenciais. Atletas ultrapassarão seus próprios limites. Cientistas e arqueólogos descobrirão. Espiritualistas livrar-se-ão da mente. E cristãos levarão a mensagem de Jesus Cristo, lembrado no domingo de Natal, esquecido da segunda-feira de trabalho.

Minha lista, porém, é um tanto estranha. Nem ao certo uma lista é. Pois é singular, singela, eu diria. A lista de um item, sem rodeios, seria: um beijo da brasiliense florianopolitana da voz de menina.



Publicada no Jornal de Santa Catarina. Blumenau, 28/12/2005.

domingo, 27 de julho de 2008

ANA

Fora apenas para retomar a brincadeira com os amigos que a cumprimentei, como faziam todos os rapazes a flertar quando uma bela senhorita resolvia dar o ar de sua graça. Mas o simples "oi" deu resultado à uma das maiores relações que já tive com qualquer moça. E tudo aconteceu tão rapidamente.

Começamos a nos corresponder e Ana logo de cara tornou-se um dos objetos que sustentam minha mania: a de estudar psicologicamente as pessoas. Detalhista e perfeccionista, porém, desorganizada e preguiçosa, com empenho apenas para cozinhar. E como adora! Sempre comendo. Magricela de ruim, a danada. Sempre querendo vencer em tudo, ser melhor, ser especial, ser única, embora não invista muito esforço para tal. As vezes sua obsessão (ou "obcessão", também poderia ser, e não o é pois nossa língua é de uma burrice descomunal. Mas isso é coisa nossa) beira o ridículo e a faz parecer patética. Nessas ocasiões ponho em mim um sorriso circunspecto no rosto e penso em como ela fica bonita quando implora por um agrado. E eu dou.

Em nossas primeiras conversas logo pude notar o quanto ela se identificava com Andreas, guitarrista de minha banda, a quem trato como irmão. Listei suas melhores qualidades, embrulhei pra presente com cuidado e pus-me a ajudar o cupido. Apresentei a ele, por primeiro, um vídeo que mostrava os alvos que Ana acertava com chumbinho a mais de 20 metros de distância; e dentre eles um grampo de roupa preso ao varal. Andreas é fascinado por armas de fogo, exército, guerras, destruição e todas essas coisas desprezíveis que faz do ser humano o ser inteligente mais burro que pisa na face da Terra. E ele a desdenhou, sabe-se lá por qual razão - talvez por atirar melhor, penso.

Mas continuei em meu esforço. Uma foto de Ana, de costas, mostrando seu lindo corpo esguio empunhando um rifle de calibre 12 possivelmente o faria cair da cadeira! Entretanto, nada. Em minha última cartada uma belíssima foto em que ela joga os cabelos. Tão sedutor quanto um comercial de xampu: "Não é tão bonita assim...", faz descaso. Bom, minha vontade era socá-lo, mas pensei em algo melhor. Depois de alguns minutos até resolveu perguntar quem era a moça mas já era tarde. Eu já queria que ele fosse tomar banho na soda. Nada mais apropriado conquistá-la e o fazer morrer de inveja. Isso o faria aprender a nunca mais tratar uma dama deste modo.

A beijei no dia 25 de junho, e não poderia ter recebido melhor presente. Detesto todos os meus aniversários, inclusive os que estão por vir. Não dou a mínima. No ano passado só fui lembrar que estava de aniversário ao colocar a data numa crônica, a caminho do trabalho. Presenteei a mim mesmo com minha crônica favorita em todos esses anos escrevendo. Será ótimo lembrar deste dia no ano que vem. Parecíamos tão adolescentes naquele ponto de ônibus que chegaram a comentar em elogios.

Começamos, então, a nos apegar. Ana hoje diz que em 2 meses ultrapassei seus ex-namorados em intimidade. Me faz sentir tão especial que esta foi apenas a segunda vez que escrevi uma crônica já sabendo qual seria seu título, o que também a torna especial. Mas isso nos trouxe medo. Ela havia recém saído de um namoro de 3 anos e pretendia apenas se divertir um pouco, vendo em mim uma possibilidade de conseguir isso mantendo, no mínimo, uma boa dose de amor próprio. Quanto a mim, sequer preciso falar. Nasci para ser solteiro e morrerei solteiro. Sou um romântico, um cavalheiro, as mulheres não gostam disso. Sou um admirador do sexo feminino e amo as mulheres. Pertencer à uma só mulher seria como ouvir uma música de apenas um acorde. Me vejo como um refúgio onde as mulheres vêm e vão e não tenho problema algum com isso. Recebem sua quantidade necessária de carinho e atenção e então voltam para seja lá o que for que as atrai nos outros homens.

Quando conseguimos uma oportunidade, Ana e eu nos resolvemos como pessoas adultas e o peso do medo de magoar ao outro nos foi tirado das costas. Esse medo vem do imenso carinho que sentimos um pelo outro. Somos de uma curiosidade tão grande que sequer nós mesmos conseguimos conceituar. Vamos desde o auge do prazer sexual em fazer coisas que nunca fizemos com outros a chorar de emoção quando disse que ela é "especial pra mim por todo o conjunto da obra. Desde suas qualidades mais discretas até seus defeitos mais marcantes". Gosto de como ela confia em mim e de quando ela quer me agradar. Como quando usou uma roupa sensual no dia de nosso show porque eu era digno de andar pra lá e pra cá com uma mulher linda - adoraria ter visto a cara de Andreas quando ela chegou se conseguisse tirar os olhos de suas curvas. Mas gosto também de cuidar dela e de como nos desentendemos a todo tempo. Eu e Ana somos assim: solteiros. Mas nós colocamos a Promiscuidade em xeque.


Blumenau, 27/07/2008.

sábado, 26 de julho de 2008

O ENCONTRO

- Oi!
- Oi...
- Você vem sempre aqui?
- Essa é velha, hein?
- É! Realmente. Mas o que você sugere que eu diga? Queria te conhecer.
- Bom, tenho que admitir. Também não consigo pensar em outra coisa mais apropriada.
- Sim, ainda mais num ambiente conturbado como esse. É difícil pensar.
- Ah, gosto daqui.
- Sim, claro, eu também. Não foi isso que quis dizer. Sei lá, quis dizer que não sei muito bem como agir aqui.
- Pega uma vodka e fica zanzando.
- É isso que faço geralmente. Fico cumprimentando os conhecidos e tudo o mais. Mas parece tão fútil.
- Se você diz.
- Você fica sempre aqui? Sentada no balcão?
- Ultimamente. Não tô muito legal.
- Tô incomodando você?
- Não, não.
- Se quiser eu posso ir...
- Não, cara! Volta e senta aí que eu gostei de você.
- Como assim?
- Ah... não gostei, gostei! De gostar. Não é o que você tá pensando.
- Não tô pensando nada.
- Tá, só achei que tivemos uma afinidade, entende?
- Sei do que você tá falando.
- Então. Nem sei porque tô falando com você. Sou bastante fechada.
- Sei como é. As vezes aparece um maluco que a gente se identifica. Vai saber se vamos nos tornar grandes amigos daqui pra frente.
- Pois é.
- Hm... sem querer ser intrometido...
- Larga essas frescuras de educação: desembucha aí, vai. Vamos conversar.
- Tá! Você tá bolada com o quê?
- O de sempre.
- Um cara, né?
- Um cachorro!
- O que rolou?
- Me trocou por uma sirigaita.
- Sirigaita. Engraçado, fazia tempo que não ouvia esse termo.
- Sim! Eu aqui contando meus problemas pra um cara que nem conheço e você pensando em dialeto dos anos 80?!
- Desculpa. Calma. Não vamos ter nossa primeira briga já. Fazem dez minutos que nos conhecemos.
- É, tem razão. Estou um pouco alterada, na verdade. Desculpa!
- Não tem problema. Isso tá te abalando mais que o normal?
- Acho que sim. Não tá sendo muito fácil.
- Eu... posso te abraçar?
- Cara, fazem dez minutos que nos conhecemos!
- É verdade. Só achei que fosse te fazer bem.
- Na verdade faria, mas você só tá querendo me levar pra cama.
- Agora fiquei ofendido!
- Ai! Desculpa de novo. Eu sou uma burra!
- Não, não é. É bom que você pense assim porque tenho que admitir: não se fazem homens como antigamente.
- Mas você não é de antigamente.
- Bom, minha mãe que diz isso!
- Tolinho!
- Seu sorriso é lindo! No início você foi tão grossa que logo arrumei uma desculpa pra ir embora. Sorte que você me puxou de volta.
- Cachorro! Eu pensei que você estava sendo educado!
- Eu pensei que você não seria tão grossa. E "de nada"!
- Ajo assim pra espantar os chatos. Os caras do "você vem sempre aqui?".
- Deus do céu. Nunca mais vou dizer isso na minha vida.

...
- Você é tão diferente dos outros.
- Hã? Por quê diz isso?
- Sei lá. Vejo pelos seus olhos.
- É a primeira vez que alguém diz isso.
- Mas já devia saber. Você mesmo se enquadra numa posição diferente, tratando-os por "eles". Você não se inclui.
- É, na verdade não consigo ter atitudes parecidas com as deles.
- Que tipo de atitudes?
- Ah! Não sei, é muito relativo. Talvez pelo próprio modo de agir mesmo. As conversas típicas sobre mulheres; a perfeita combinação entre carros e cerveja; receber centenas "daqueles" e-mails... nunca recebo nenhum deles. Essas coisas não combinam comigo.
- Viu? Eu disse.
- Uma vez pensei que fosse gay...
- Credo!
- ... mas minha certeza vem da vontade enorme de te dar um beijo agora mesmo.
- Ai...
- Desculpa. Eu não devia ter dito isso.
- Não é isso!
- Que foi?
- É que parece que encontrei o cara mais perfeito do mundo. Acho que se fosse pra rolar algo entre a gente não poderia ser assim. Nem aqui.
- Por quê?
- Ah, tinha que ser na beira da praia, olhando o luar.
- Acho que você anda vendo muita novela.
- Não gosto de novela. Só que tinha que ser um lance mais especial.
- Levanta, então! Vem aqui comigo.
- O que você vai fazer? Ai, meu Deus...

...
- Então. O que você acha?
- Hm, essa não é uma música pra dançar juntinho, mas você tá realizando o sonho da minha vida!
- Esquece essa música.
- Já não penso mais nela, nem nesse lugar, nem nessas pessoas.
- Não é maravilhoso?
- Você é maluco, mas eu nunca havia sentido isso antes.
- Isso é paixão, querida.
- Eu pensei que ela vinha antes disso tudo.
- Uma das mentiras do mundo.
- Nem acredito que isso tá acontecendo!
- Isso é porque ainda não nos beijamos...

...
- Obrigada por essa noite. Foi maravilhosa.
- Eu disse que você precisava de carinho.
- Será que posso ter esse carinho por mais tempo?
- Era tudo o que eu queria ouvir! Vamos. Levo você pra casa.
- Só tem uma coisa!
- Que foi?
- Qual é mesmo seu nome?
- Haha.. Alexandre. E o seu?
- Carla.
- Isso foi... estranho, eu diria.
- Mas muito interessante. Em menos de uma hora conseguimos uma história pra contar pro resto da vida.
- O que? Você já quer casar?
- Engraçadinho.
- Você é linda, sabia?
- Você que é!
- Fala sério! A primeira coisa que vamos fazer é comprar óculos pra você...
- Te amo...


Indaial, 17 de agosto de 2005.

sábado, 19 de julho de 2008

Criciúma

A poluição da fumaça cobria o horizonte ao passar pela área industrial. Assustava minha opinião a respeito de Criciúma, enquanto me aproximava da cidade. Mesmo dentro do carro, com as janelas fechadas, meus olhos começaram a arder. Julgava ser consequência de minha noite mal-dormida com apenas 1 hora de sono - ou cochilo, até que a irritação passou também para as cordas vocais.

- Estes empresários deveriam ir em cana! - exclama meu bom velho seu repúdio.

Entendo que uma digna folga financeira para os filhos de seus filhos seja importante, mas é um princípio conturbado, visto que tanto se fala hoje em dia sobre aquecimento global. Seria pedir demais que se preocupassem também com os filhos de meus filhos?

O cenário começa a amenizar quando entramos em Içara. Mais ainda porque a cidade me recorda a amável e sedutora Priscila; uma senhorita de expressão cativante por quem criei rapidamente singelo afeto. Lembra também sua irmã, que surpreendentemente é tão rude quanto o vingativo Corisco - como afirma a própria, mas a lembrança de "Miéia" é uma lembrança divertida.

Chegando em Criciúma foi fácil até demais achar o Della Giustina, local onde combinei o reencontro com Michelle, amiga que não vejo há cerca de 6 ou 7 anos... Eu não poderia ser mais desnaturado com uma pessoa tão especial. Logo tratei de avisá-la de minha chegada e, posteriormente, à Suelen, que somente existiria através da fé, pois é inconcebível que alguém possa ter tantos minuciosos detalhes em comum comigo.

Avisadas minhas pessoas mais queridas é hora de dar um giro e conhecer o ar da cidade, sua essência, sua coisa-em-si. Ao sair do Della Giustina despenco, como um presente da causalidade, na praça Nereu Ramos: o coração de Criciúma. É aqui que trabalha todos os dias Passarinho; e é a ele que preciso entregar o abraço do Lagarto transformando a praça em um zoológico. De Blumenau à Criciúma os hippies possuem, na abstinência da luxúria, uma beleza que poucos enxergam no ir e vir da propensão ao consumismo local, tornando-se em verdadeiros andarilhos do capitalismo. Com exceção daquela doce garotinha que ainda não aprendeu a caminhar com elegância e não sabe que tem lindos olhos azuis. A meiguice da imagem é indescritível.

O clima não poderia ter outro adjetivo senão perfeito. O calor do dia ensolarado equilibra a baixa temperatura da época, tornando o ambiente limpo e suave com a música italiana ao fundo. Esta manhã não poderia ser tão ideal para um apreciador do frio que vive em Blumenau: verdadeiro inferno tropical. Motivo talvez pelo qual a cidade tenha se tornado um antro de amantes do chopp. Tanto que me senti forçado a sentar no bar central da praça quando observei todas estas mesas e cadeiras postas propositalmente com a pretensão de me convidar quando chegasse à cidade. Gostaria que estivessem aqui também Júlia, Tiago, Frank, Samira, Marquinhos e Alice. Tenho a sensação de que pertenço aqui. Em função da madrugada de sexta, suponho que o sábado sequer tenha começado para eles. O meu mal começou, mas, para alguém que tanto admira as coisas simples da vida, já teria valido muito a pena.


Criciúma, 19/07/2008.

terça-feira, 15 de julho de 2008

A Bela Boemia

A Boemia tem incrível beleza. Tantas vezes criticada e açoitada por aqueles que ficam até tarde no trabalho esperando receber aquela promoção ou aumento que mais parece uma novela; e muitas vezes até um mito. Gente que diz que o trabalho dignifica o homem. Eita, engano!

Veja essas pessoas e suas conversas. Algumas expressões sérias de quem está compenterado no assunto. Certamente que discutem sobre história da humanidade, de onde viemos, para onde vamos. As vezes não assim tão abrangente. Pode ser que aconselham amigos a resolver um certo problema banal, entre um gole e outro de cerveja.

Falam sobre como vão concluir aquele trabalho de faculdade, sobre o que vão fazer da vida num futuro próximo, sobre abrirem juntos um novo negócio; sobre o relacionamento com a namorada ou o que fazer a respeito do vocalista da banda que não se empenha em decorar as letras dos covers e só quer saber de "pegar" as menininhas e se afundar na depressão. Estas sim são coisas que dignificam o homem. Boêmios discutem e filosofam; boêmios são grandiosos!

Mas existem aqueles que só jogam conversa fora e se afogam com cigarro ao não suportar a gargalhada. E são belos assim. Até os que julgam afirmam que o sorrir embeleza o rosto. Sem sombra de dúvida que amanhã pela manhã terão um dia mais gostoso e que virão com boas histórias pra contar. Executarão com mais tranquilidade e humor suas tarefas do dia-a-dia. E ainda farão com que seja mais agradável a vida dos coitados e pobres gananciosos que buscam a tal da promoção. Daqui a dez anos eles ainda estarão desfrutando da vida que lhes foi presenteada. Serão empresários, músicos talentosos, pessoas de bem, que fazem bem a outrém. Enquanto aquela promoção não chega.

E como bons boêmios que são, serão escritores também.


Blumenau, 23/03/2007.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Terceiro grau: conta?

Por que será que as coisas mais loucas que se possam imaginar têm sempre que acontecer comigo?

Era natal. Não estava gostando nem um pouco da idéia de ter que encontrar novamente todos os meus parentes. Levava comigo, no caminho, a absoluta certeza de que seria algum tipo de atração bizarra em meio aos calças-apertadas. A reunião anual que o tio Nate promovia haviam três anos começava a funcionar como uma reunião de verdade. Sim, porque antes ninguém prestigiava, exceto a família esquisita dele.

Cheguei e me aconcheguei num banco fora da área onde a bagunça seria generalizada. Enquanto o povo chegava me olhando atravessado, minha única atração e ocupação era um tedioso jogo de celular. Foi quando a coisa toda se fez:

- Quem é aquele moço sentado ali?
- É o mais velho da Luciane.
- Não acredito!

Na verdade eu não sou "o mais velho da Luciane". Mamãe casou-se novamente e agora tenho três irmãs e um irmão. Mas eles insistem em tratar dessa forma. Não digo nada disto.

Durante esse tempo ainda não tinha olhado nada nem ninguém. Quando alguém sem um pingo de noção parava a minha frente com cara de quem se sentia a pessoa mais abençoada pelo nascimento de Cristo, as fazia voltar a realidade apenas com o olhar. Eu parecia uma "segunda-feira".

Quando me bateu uma compaixão pela imagem da minha família decidi "fazer um social". A primeira coisa que notei foi um olhar. Um olhar diferente. Tinha um ar de indagação. Mas parecia haver algo a mais. Ela me olhava seguidas vezes sem muito rodeio. Era direta e nada discreta. Ah, e como gosto das moças de atitude, decididas. Só queria então saber qual dos almofadinhas ali era o namorado dela. Não podia ser parente minha; nunca a tinha visto antes. Mas foi-se demorando para um daqueles intelectuais sentar-se ao lado dela. Já havia notado três anéis de prata nos dedos da mão direita: "Talvez aquela seja aliança, ou talvez ela apenas goste de anéis de prata". E sim, ela gostava de anéis de prata.

Ficamos trocando olhares mas não tinha coragem de me achegar e conversar. Não sou nada talentoso para tais coisas. Bem, sei conversar, mas galantear é diferente. Tem gente que é artista nisso.

Luzes apagadas, velas foram acendidas, e formamos um círculo de mãos dadas pra cantar o Hino da Família; aquela música: "Abençoa Senhor as famílias amém, abençoa Senhor a minha também...", e por aí vai. A expressão de espanto dela quando notou que eu sabia cantar a canção foi impagável. Não parece tão cômico, mas um jovem "comemorando" o nascimento de Cristo vestindo somente preto e camisa de banda de metal cantando esse hino... Não preciso dizer mais nada.

Ela era linda. Tinha longos cachos muitíssimamente bem cuidados; e eles eram constantemente acariciados pelas mãos graciosas e delicadas daquela mocinha. Estatura perfeita e um sorriso fascinante, querido e simpático; este, acredita, seja seu maior dom. Ela continuava apenas observando os acontecimentos ao redor e rindo. Estava se divertindo bastante, se sentindo tão bem, e me fazendo sentir bem. Até que minhas irmãzinhas inventaram de cantar umas músicas. Foram lindas, mas me armaram uma forca.

- Andryo! Vem cá rapaz, canta umas músicas pra gente! - disse meu tio entusiasmado.

A casa caiu. Um arrepio me correu da cabeça aos pés. Quando tio Nate me chamou ela virou-se rapidamente para mim com uma expressão de surpresa, como se estivesse se perguntando: "Ele canta?". Mas, quando minha testa franziu os olhos dela riam de mim. Um típico: "Essa eu quero ver!". E estava mesmo pagando pra ver, a danada.

Dali caminhei feito suíno em destino do matadouro. Tenho tocado muito piano ultimamente, mas havia apenas um teclado. A diferença é visível. Sem falar que não tinha pedal de "sustain", que é um componente do piano que, quando pressionado, libera as cordas dando continuidade ao timbre. Esse pedal existe disponível em versão eletrônica para teclados. Pergunte a qualquer pianista se consegue tocar sem isso. Parece droga: depois que usa, vira escravo.

Dei sorte! Estava afinadíssimo naquela noite. Soltei o verbo em "What if a Stumble", do DC Talk, uma de minhas músicas favoritas para piano. A coisa toda rolou meio constrangedora mas me virei. E então, chegava a hora de partir. Ah, nada me tiraria a vontade de ficar. Queria permanecer na presença dela até o último segundo. Queria ser levado à alvorada e com ela ouvir os pássaros que cantam agora e me presenteiam o nascer do sol. Tinha que arranjar um meio de ficar.

Mesmo já dentro do carro a caminho do destino não desisti, como de costume:

- Me deixam voltar depois de vermos a vó?
- O quê?
- É, até que estava gostando de ficar por lá.
- Eu não acredito nisso! A gente te leva lá.

Eu tinha certeza de que a intenção real dela é de que eu me misturasse com o bando de boa-pinta, mas de onde surgiu tanta bondade, não sei. Era natal, vai saber!

E mais espanto! Faltou beliscar-se quando viu que eu estava de volta. Mas não, não fui falar com ela. Me desculpem, mas vai ser muito difícil me ver um dia galanteando.

Seus pais levantam-se juntos. Começa o cerimonial de despedida. Ela fica sentadinha e eu começo a ficar nervoso. Quando se levanta entro em pânico! Fico parado no mesmo lugar sem sequer piscar. Ela havia me deixado completamente dependente. Minha estabilidade dependia de que ela permanecesse lá onde estava.

Ela se despede de todos e termina no meio do local, perdida, sozinha. Eu lá, estático! É quando ela olha pra mim e seus lindos cachos flutuam como nos filmes, sorri, e começa a caminhar em minha direção. Pânico! De tão arregalados os olhos, minhas sombrancelhas esconderam-se debaixo do boné. Ela é tão linda! Me concentrei e até consegui executar uma ação: sorrir. Se bem lembro demoraram-se três minutos para ela chegar: meu delírio continuava e eu ia analisando cada curva do corpo dela.

- Oi!
- Hã?! Oi! - acordo - Tchau, né?
- Pois é!

E ela me beija o rosto. O fez com tanta delicadeza, mas o que acontecia por dentro de mim não era nada delicado. Tive duas convulsões por ensolação quando surfava, mas não se comparam com o caso. Euforia, adrenalina, disparo do batimento cardíaco, perda dos reflexos e outras consequências mais que não consigo explicar. Talvez seja ousadia, mas arrisco dizer que ela não percebeu os "acontecimentos", ou fui eu quem não percebi as reações dela, porque não conseguia me desprender daquele sorriso.

Enfim, mudando de século XXI para pré-história, por estas e outras, minha lista de acontecimentos freaks ganha um novo item: fiquei perdidamente apaixonado por minha prima de terceiro grau.


Balneário de Barra do Sul, 26/12/2003.

terça-feira, 8 de julho de 2008

10 Segundos

Foi uma imagem surpreendente de tão magnífica. Prendeu-se à minha memória, e a lembrança me presenteava bem-estar sempre que pulava para meus momentos de ócio, sentado à qualquer mesa de bar ou assistindo, despercebido, pela janela, o mundo lá fora. Alguma vez na vida você já se apaixonou e sentiu algo belo assim. Era uma sensação semelhante.

Ocorreu a muito tempo atrás, mas lembro como se estivesse acontecendo agora mesmo. Estava em uma das mesas da cafeteria, no shopping, com uma xícara de expresso posta à mesa e me deliciando com crônicas de Rubem Braga; o livro tinha aquele característico aroma de recém-adquirido. Jurava que a doçura do momento não podia alcançar pico mais alto, entretanto, a mágica do acaso me forçou, sem razão alguma, a retirar os olhos da leitura. Então passei a ler outra obra de arte.

Quando surgiu no plano o mundo só não parou porque ela fica mais deslumbrante em slow motion. Posso arriscar dizer que a surpresa em presenciar a cena se equipara ao dia em que abri os olhos em 1984 para pela primeira vez contemplar as novidades do mundo - jamais havia presenciado tamanha beleza. Suas pernas longas e finas entrelaçavam-se num andar majestoso, digno de se abrir um corredor humano para seu passar. Facilmente pode-se imaginar alguém prepotente e altivo quando se lê o descritivo, mas bem sabem todos que isto causaria repulsa no caro Andryo, adorador das coisas singelas e bonitas da vida. Seus grandes e lindos olhos contemplavam o todo, como se apenas por não se importarem tivessem todo o controle dos acontecimentos a seu redor. Isso sem falar no sorriso circunspecto e satisfeito que instigava as pessoas a desejarem ser aquela senhorita fascinante.

Então ela me olhou nos olhos, desconsertou o que restava de minha noite - e de mim - e se foi. Permaneci por alguns minutos ainda ali, perplexo e sem ação, forçando meu entendimento a tentar compreender como ela conseguira em 10 segundos abalar a alguém tão seguro, mas não obtive sucesso. Talvez porque ela é a única que tem uma manchinha no olho.


Blumenau, 08/07/2008.

domingo, 6 de julho de 2008

Elas

Fazia tanto tempo que não a via de rabo-de-cavalo. Ela estava linda hoje, mais que nunca. Mesmo com toda a simplicidade da sua blusa de escola. Uma roupa nunca cai tão bem em uma menina como seu uniforme de escola. Mostra sua beleza verdadeira. Nada daquela coisa de arremessar na cara quilos de uma infinidade de cremes, hidratantes, bases, pó disso, pó daquilo.

Sabem que já existem até definições para tipo de rosto? Vale maquiagem pra rosto quadrado, redondo, triangular e oval. Como saber se um rosto é redondo ou oval?

Existem umas expressões estranhas que só as mulheres conhecem: cabelos médios, cabelos cortados em camadas, fio reto, franja farta. As singelas bochechas são chamadas de maçãs do rosto. Alergia agora é dermatite de contato! Por que será? Dessas coisas não sei nada. Queria olhar pra uma moça na rua e saber que o cabelo dela é cortado em camadas. Sem falar nos termos: sílice, ginkgo biloba, ruge, sulcos, eczema seborreico! Deve ser muito difícil ser mulher.

Privilégio ainda maior tem a moça que consegue ser linda ao acordar. Esses tempos dormi na casa de amigo meu cuja irmã estuda na mesma faculdade que eu. Imagine a surpresa que teve quando me viu sair do quarto enquanto passeava pela sala com toalha e xampu na mão e os cabelos todos emaranhados:

- Que tais fazendo aqui?
- Bem - disse esfregando os olhos - acordando, acho.
- Morro e não vejo tudo.
- Eu que o diga...

E pior - para nós homens, é claro - é que fazem tudo isso para elas mesmas! Nenhuma moça se arruma, propriamente, para nos impressionar. Saem todas cheias de parafernálias e é tudo para deixar a amiga morrendo de inveja. Pretensiosas! Enfim, o bom - para nós homens, é claro - é que todo esse esforço e vaidade delas, no fim das contas, vale muito a pena!



Blumenau, 01 de outubro de 2003.