sábado, 2 de agosto de 2008

UMA VELA NA JANELA

Ora. O fim do ano. É chegada a hora de pegar caneta e papel e fazer a famosa listinha do que quer conquistar no próximo ano. E do que quer abandonar também.

Mas tem quem viva do passado. A adolescente que folheia o diário onde registrou todas as paixões do ano; algumas talvez ela nem lembre. O sábio chefe de lar reúne a família para uma retrospectiva, igual a da Globo. O presidiário que, deitado olhando o teto, entrelaça os dedos das mãos sob a nuca e relembra as mesmas coisas do ano passado. Seu Nestor, da loja de discos, todo ano coloca uma vela na janela e, ouvindo o solo de saxofone de "Long as I Can See the Light", relembra os shows do Creedence. Ele gosta de dizer que viajou mil e seiscentas milhas em um ônibus para chegar ao Woodstock de 69; e de como os americanos pronunciavam seu nome em paroxítona. Às vezes o chamo assim.

Essas listas podem ser extensas ou suprimidas. As extensas são cheias de coisas pequenas e funcionais que fazem o mundo andar, progredir, crescer. As suprimidas vêm com dois ou três itens capazes de mudar a história da humanidade. Há os que enfiam os pés pelas mãos e os que acreditam não serem capazes de muito. Entretanto, todos somos sonhadores.

Jovens universitários calculam quantas manifestações se é possível realizar em doze meses. Casais planejam unir-se em matrimônio. Idosos desejam tão somente morrer. Crianças prometem estudar bastante para não se dar mal no fim do ano, embora só o façam nos primeiros meses - depois o que mais importa são o recreio e as aulas de Educação Física. Homens trabalharão arduamente para terminarem a construção de suas casas. Artistas se sacrificarão para obterem sucesso - outros nem tanto pelo sucesso; artistas essenciais. Atletas ultrapassarão seus próprios limites. Cientistas e arqueólogos descobrirão. Espiritualistas livrar-se-ão da mente. E cristãos levarão a mensagem de Jesus Cristo, lembrado no domingo de Natal, esquecido da segunda-feira de trabalho.

Minha lista, porém, é um tanto estranha. Nem ao certo uma lista é. Pois é singular, singela, eu diria. A lista de um item, sem rodeios, seria: um beijo da brasiliense florianopolitana da voz de menina.



Publicada no Jornal de Santa Catarina. Blumenau, 28/12/2005.

11 comentários:

Maria Clara da S. Dallagnolo disse...

Eu sou uma admiradora das tuas crônicas, e sempre que você atualiza aqui eu venho ler ;)
e essa é muito legal, adorei, como quase todas.
Beijos, saudades.

C. K. disse...

Mas e aí, conseguiu o beijo?

Crônica linda, cheia de sensibilidade. Como você. =)

Unknown disse...

Acho um belo simbolismo!E apesar da época ser conciliada com sininhos,pisca-picas,memórias eletrônicas,fogos e enfins,é uma pena que a humanidade seja tão patética pra precisar de um feriado cristão ou um final de ano para dizerem o quanto as estimam,sairem um pouco da monotonia e das dificuldades do dia para troca de carinho.
Mas há nessa passagem um fenômeno especial que acalanta os corações tristes e cansados de viver. Um jeito de respirar diferente.É como se o tempo fizesse um agrado,uma carícia suave no rosto, dizendo: “não,não paro de passar, nunca pararei. Mas você pode zerar tudo agora pra tentar de novo, mais experiente ainda”. Mudança. Novos ares, novos rumos,novo ânimo.Ano novo.
Não se trata daquelas promessas estranhas,“vou fazer isso, aquilo, deixar de fazer aquilo outro”. Normalmente, essas promessas, tão vazias de sentido e mal intencionadas, de novas não tem nada.É aquela sensasação mágica de novidade.Na verdade,é uma ilusão. De ilusões também se vive, diria alguém que eu não lembro quem é. E, pra mim, essa é uma das ilusões mais deliciosas.É delicioso saber que aquela fatia de tempo que você tinha pra viver, e que viveu, bravamente -apesar da falta de grana,da violência,da solidão,da angústia,do desânimo,do capitalismo,do cansaço, dos chefes ditadores,das loucuras do dia-a-dia - passou.Foi bom? Passou. Foi ruim? Passou.Passou e você vai recomeçar!
E espero que tenhas conseguido o beijo.
Me sinto sempre abraçada com tuas palavras,um beijo.

Unknown disse...

Eu nem vou ler aqui, porque já li trocentas vezes. Foi a primeira que tu me mostrou.
Eu acho divertido ler as tuas crônicas de anos distintos, porque a evolução é nítida. É gritante como tu escreve melhor hoje!

Fica aí dizendo que atualizou só pra ganhar comentário, né? (Hunf)

Andryo Dias disse...

E eu lá ia lembrar que tu já tinha lido! HAHAHA

Gilles Sieves disse...

O "Seo" Nestor, me fez lembrar do Castanha lá da antiga "Rarus Discos"...
Passava horas lé falando de música e das injustiças da indústria fonográfica....
ahhh qto tempo perdido e ganho ao mesmo tempo.

AbraZION man!!

Por Minuto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Por Minuto disse...

gosto mais quando as cronicas são assim menores.. sempre passo por aqui, mesmo sem as vezes comentar.. hehe
beijos!

michele. disse...

depois da propaganda e todas as brincadeiras legais, enfim, vim ler, e adorei, lindo demais o jeitinho doce de colocar as palavras.. parabéns! :**

Anônimo disse...

ESSA é a palavra:
Doçura.

Um homem que em pleno século de ultrapassagem intelectual e sordidez, ainda consegue transmitir doçura.

Eu sempre leio seus textos, mas só comento nos quais consigo achar as palavras certas. Porque muitas vezes onde você enxerga beleza, eu enxergo nonsense.


A única coisa que consegue realmente e essencialmente me transformar num doce de pessoa, são acordes, notas, melodias. Relações humanas vêm em segundo plano, quando distorcidas (o que é constante).

Joannes

Unknown disse...

Odeio finais de ano assim como quaisquer outro tipo de comemorações. Esses tempos foi meu aniversário e fiz questão de não falar pra ninguem só não ter que ouvir alguem dizer "parabens" e ter que engolir uma boa contra resposta do tipo "parabens pelo que? por estar vivo? grande vantagem!".

Assim como virada de ano e aniversários sempre vem aquele pensamento "lá se foi mais um ano que não fiz nada", é quando toca aquela maldita musica que realmente faz tu entrar numa foca que é mais ou menos assim "então é natal e o que vc fez, o ano termina e comeca outra vez". vsf!

Desculpe o pessimismo, mas não estou num bom dia. Acabei desabafando um pouco aqui. Tô com crise de existencia acho. crise essa que não vai me deixar ir no River, que vai me deixar ainda mais contente. ¬¬"


ah, é um bom texto cara.
parabéns cara ^^