segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

UMA INUNDAÇÃO DE BONDADE

– Fiquei cinco dias ilhado, num sítio em Pomerode, sem água, sem energia elétrica e sem comida. Pescávamos peixes na lagoa e assávamos no forno à lenha. Quando consegui voltar à cidade encontrei minha casa debaixo d’água.
– E ainda assim você está aqui. Isso é louvável.

Ouvi esta declaração hoje, em um dos postos de coleta de doações, onde estava trabalhando como voluntário. Horas antes o havia julgado erroneamente, de vista. Recém havíamos engolido um caminhão que trouxera alimentos, na incrível rapidez da força que tirávamos dos urros masculinos que ecoavam no pavilhão – pois ela havia-se esgotado há muito. Sentamos uns poucos minutos para descansar e relaxar matando um cigarro. Ele puxou conversa, então sentei a seu lado e fiquei ali a perceber, apesar de sua frágil estatura, o quão grande ele era, e o quão terrível eu podia ser em meus pensamentos.

Nossa Blumenau está em decreto de calamidade pública, devido ao excesso de chuva. No noticiário acompanhamos relatos de pais de família que perderam tudo; com os próprios olhos acompanhamos os tanques nas ruas que usamos para ir ao trabalho, e no ar os helicópteros vindos de cidades de todo o país. Desabamentos, veículos flutuando, fome, falta de água – potável, claramente –, doenças, covas abertas, pontes caídas, mortes, pessoas desabrigadas e pessoas presas nos morros acenando para os helicópteros, desesperadas por socorro. Parece o armagedon, e meus pais o assistem em Minas Gerais, pelo noticiário, agoniados em preocupação, enquanto minhas irmãs mais novas dançam sua inocência na sala. Escrevo da varanda de casa, de físico cansado e mente cada vez mais atribulada, enquanto assisto a torrente de água que não cessa e me caçoa.

Bebo para aliviar a dor do coração. Gostaria de crer em um deus qualquer para ter em quem colocar a culpa, mas, melhor que isso, prefiro lembrar do dia de hoje. Para mim, ele não passou. Está encravado em minha memória, e se fortalece enquanto tento segurar uma lágrima. Fico extremamente emocionado neste momento lembrando dos detalhes: os carros e caminhões que não paravam de chegar, as homenagens e aplausos em agradecimentos aos caminhões que chegavam de distantes cidades, as comemorações a cada caminhão descarregado ou cheio, os tropeços nas lonas, as piadas sobre nossa própria desgraça do cansaço... Tudo tinha uma beleza sem preço, até quando desloquei minha coluna numa das caixas que carreguei, de mirrado e fracote que sou.

O presidente veio à cidade; William Boner apresentou o Jornal Nacional ao vivo daqui; nosso excelente prefeito estava no Jornal do Almoço vestindo capa de chuva e de barba por fazer. Veio Ana Maria Braga, veio fulano, veio cicrano. Veio um monte de gente. Cada um faz sua parte, e com trabalho e dinheiro recuperam-se os bens materiais, reconstrói-se a cidade. Mas hoje, dentre aquelas centenas de pessoas em suas expressões fatigadas, voluntários sorrisos cheios de força reconstruíram solidários espíritos.


Blumenau, 29/11/2008.

5 comentários:

Gilles Sieves disse...

Lindo mesmo são as doações vindas do Nordeste, um legítimo tijolo na orelha do orgulho "germânico-nazi-choppmotorrad"!

Caroline Steinhorst disse...

é triste andar nas ruas...né...!

Ana disse...

É bom sentir que fomos útil, que fizemos alguma diferença, mesmo que seja por gestos singelos. Faz um bem para o coração.

Ótima crônica.
Até que seu altruísmo não vai nada mal. ;D

Andressa Schmitz disse...

"Voluntários sorrisos cheios de força reconstruíram solidários espíritos." (amei essa frase)

É bem isso mesmo! Porque um ser de espírito enfraquecido, simplesmente não é nada!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.